Porque “seca” o rio Tejo em Portugal? Pela mesma razão que na Estremadura espanhola.
A gestão hidroelétrica discricionária realizada pelas empresas concessionárias, à sua maneira e vontade, faz com que o rio Tejo tanto “seque” como se encha de água.
Temos vindo a afirmá-lo, mas agora são os próprios espanhóis estremenhos a sentir aquilo de que sempre nos queixámos.
A região da Estremadura espanhola tem significativas disponibilidades hídricas, em resultado dos elevados níveis de precipitação, representando aproximadamente 60% (7.867 hm3) das disponibilidades hídricas da bacia do Tejo em Espanha, e dispõe de barragens com capacidade para armazenar 80% destas disponibilidades, a sua quase totalidade.
No entanto, as barragens da Estremadura espanhola, apesar de terem atingido níveis máximos de 78% de capacidade de armazenamento média dos últimos 10 anos, não têm fornecido caudais ecológicos em quantidade e regularidade para garantir a sustentabilidade ambiental, social e económica da utilização dos recursos hídricos, mas sim geridos caudais energéticos em função da maximização do lucro na produção de energia hidroelétrica.
O rio Tejo não pode ser apropriado para lucro destas empresas concessionárias em prejuízo de tantas comunidades ribeirinhas ao longo do Tejo.
Temos que unir esforços para pedir a revisão da Convenção de Albufeira com caudais verdadeiramente ecológicos, porque a água existe.
E tanto existe que, entre junho e setembro, foram atingidos os valores máximos de caudais médios diários que afluíram este ano de Espanha para Portugal, de magnitude semelhante aos verificados no meses de inverno com maiores afluências, em Dezembro e Janeiro, além de que, neste mês de setembro de 2019, foram realizadas volumosas descargas de água das barragens da Estremadura espanhola, de 239 hm3 em Alcântara, 175 hm3 em Cedillo e 43hm3 em Gabriel e Galan, ou seja, uma descarga da barragem de Cedillo que representa 6,5% dos 2.700 hm3 de caudal anual acordado na Convenção de Albufeira a ser enviado por Espanha.
Este comportamento de vazamento das barragens espanholas de Alcântara e Cedillo está a “secar” a albufeira de Cedillo e os rios Pônsul e Sever que nela confluem (ver vídeo aqui), sendo contraditório com as reduzidas disponibilidades de água verificadas no início de setembro, significativamente inferiores ao registado em 2017 e à média dos últimos 10 anos, de 47,18% em Alcântara e 75,38% em Cedillo, e com um balanço hídrico negativo em termos de precipitação, evapotranspiração e humidade do solo.
Também não se aceita que esta “seca” da albufeira de Cedillo e dos rios Sever e Pônsul resulte de descargas com a finalidade de Espanha garantir o cumprimento da Convenção de Albufeira.
Com efeito, em maio do ano corrente o nível de armazenamento daquelas barragens era ligeiramente superior ao registado em 2017, na mesma semana, e não consta que nesse ano não tenha sido cumprida a Convenção de Albufeira.
No ano de 2017, ao invés das enormes descargas registadas este ano desde o passado mês de junho, foi realizada uma gestão mais criteriosa e regular dos caudais que permitiu chegar a novembro com níveis de armazenamento nas barragens de Alcântara e Cedillo iguais à média dos últimos 10 anos ao mesmo tempo que Espanha cumpria os regimes de caudais previstos na Convenção de Albufeira, provando assim que tal meta também seria possível de alcançar no ano corrente.
Relembramos ainda que 2018 foi um ano de muita precipitação, o que permitiu entrar no ano hidrológico que agora terminou com níveis de armazenamento ligeiramente superiores à média dos últimos 10 anos.
Na verdade, era possível cumprir a Convenção de Albufeira sem estas intensas descargas das barragens não fosse a já referida inadequada gestão que fazem das reservas de água, meramente assente em critérios de maximização do lucro da produção hidroelétrica.
E caso, antes de setembro, não estivessem asseguradas as condições para Espanha cumprir o caudal anual de 2.700 hm3, não seria mais correto fazer letra-morta da Convenção de Albufeira mediante a negociação de contrapartidas, entre as quais a futura regulamentação da gestão das barragens e a realização de ações de reabilitação de rios, que evitassem “secar” e perpetrar danos ambientais aos rios Pônsul e Sever e à albufeira de Cedillo, bem como causar prejuízos económicos às atividades turísticas e piscatórias, e perdas sociais às suas populações ribeirinhas?
A catástrofe agora criada era evitável, não está convenientemente explicada e dela não havia nenhuma necessidade!
Mais preocupante ainda é a redução do armazenamento da barragem de Cedillo até 30% da sua capacidade, quando o seu nível médio nos últimos 10 anos é de 95%, situação que pode vir a manter-se nos próximos meses se não houver precipitação suficiente para repor a cota habitual.
A aceleração do enchimento da barragem de Cedillo apenas seria possível pela transferência de água entre barragens, hipótese pouco provável, ou pelo encerramento das suas comportas, o que iria por certo afetar o armazenamento da barragem do Fratel e os caudais do rio Tejo a jusante.
Fonte: embalses.net
Ministerio para la Transición Ecológica, AEMET, SAIH Confederaciones
Por outro lado, esta enorme quantidade de água que afluiu a Portugal e manteve caudais significativos no rio Tejo é mais uma prova que a água armazenada nas barragens da Estremadura espanhola é suficiente para fornecer verdadeiros caudais ecológicos de forma regular e estável ao longo do tempo e considerando as variações naturais e sazonais do fluxo.
Com efeito, não fosse a perturbação provocada pela utilização economicista dos caudais do rio Tejo para a produção hidroelétrica e as disponibilidades hídricas existentes no rio Tejo em Espanha permitiriam o fornecimento de caudais ecológicos em maior nível e com regularidade mais benéfica comparativamente com o atualmente estabelecido na Convenção de Albufeira.
Apenas tem faltado iniciativa e vontade de negociação entre o estado português e o estado espanhol para procederem a uma eficaz aplicação e revisão da Convenção de Albufeira e ao estabelecimento de regras de gestão das reservas de água pelas barragens portuguesas e espanholas com vista a assegurar um adequado regime de caudais ecológicos e, consequentemente, o bom estado ecológico do rio Tejo.
Não podemos cruzar os braços e sermos subservientes ao Governo de Espanha, tentando usar esta ficcionada “seca” da barragem de Cedillo e dos rios Pônsul e Sever como argumento para destruir o último troço do rio Tejo que ainda é livre ao autorizar a construção de açudes e barragens para reter e gastar na agricultura a pouca água que o Governo de Espanha e as empresas concessionárias acharem por bem fazer-nos chegar.
Também não é lícito afirmar que a nossa soberania se alcança cá dentro, com estes açudes e barragens, como quer o “projeto Tejo”, quando não se tem a coragem de ser patriota lá fora a negociar com o Governo de Espanha os caudais ecológicos de que o rio Tejo precisa.
Face a tudo isto, importa concretizar a aplicação eficaz e a revisão da Convenção de Albufeira nos seguintes termos:
1. A Convenção de Albufeira deverá constituir-se como um instrumento verdadeiramente eficaz e efetivo para o cumprimento da Diretiva Quadro da Água em ambos os países.
2. A definição e aplicação de um regime de caudais ecológicos na Convenção de Albufeira e nos Planos de Gestão da Região Hidrográfica do Tejo/Tajo assentes num conceito amplo, tal que:
a) garanta o bom estado ecológico das águas e a conservação e manutenção dos ecossistemas aquáticos e ribeirinhos;
b) assegure a contínua disponibilidade dos benefícios que os rios saudáveis e sistemas subterrâneos de água proporcionam à sociedade;
c) preserve os aspetos estéticos da paisagem e outros de interesse científico e cultural;
d) garantam uma regularidade do fluxo natural com o estabelecimento de adequados caudais ecológicos diários, semanais e trimestrais.
3. A gestão das barragens portuguesas e espanholas para assegurar a quantidade e regularidade dos caudais ecológicos, mantendo a variabilidade sazonal do fluxo natural;
4. A definição de caudais de chegada à foz de forma a evitar a alteração das características das massas de água de transição no estuário do rio Tejo, o aumento da intrusão da cunha salina nos aquíferos e o grau de salinidade das águas do Tejo na lezíria ribatejana;
5. O estabelecimento de regime de caudais ecológicos para o período de exceção (seca e escassez de recursos) assente no conceito de seca hidrológica, mas em complementaridade com a seca meteorológica, agrícola e socioeconómica;
6. A supressão dos 1.000 hm3 de água estabelecidos para transvases do Tejo;
7. A adaptação aos vários cenários de alterações climáticas deve dar prioridade a mecanismos de ajustamento dos usos, atuais e futuros, aos recursos hídricos disponíveis;
8. A instauração de sanções por incumprimento da Convenção de Albufeira de carácter financeiro e ambiental.
Está na hora das comunidades ribeirinhas do Tejo de Portugal e Espanha se unirem exigindo a revisão dos contratos de concessão da produção de energia hidroelétrica e o estabelecimento de verdadeiros regimes de caudais ecológicos na bacia ibérica do Tejo e na Convenção de Albufeira.
Os rios Tejo, Pônsul e Sever não merecem “secar” por um qualquer desígnio por revelar!
Paulo Constantino
Sem comentários:
Enviar um comentário